Se a intenção passasse por abordar a primeiríssima cena de uma qualquer série, haveria certamente um maior número de casos célebres que fizeram por merecer lugar na memória. Séries como “Breaking Bad” e “Lost”, capazes de colocar questões no colo do espectador logo nos primeiros minutos. Ou a magnífica abertura de “Utopia” que a deixa transparecer de imediato como um produto único no panorama televisivo.
A intenção aqui é outra, a de esquartejar, esmiuçar o primeiro fôlego de uma série. Seja a sua duração a de meros segundos ou, caso a mestria do trabalho de câmara assim o dite, a ultrapassar a marca do minuto, por vezes um primeiro plano conta muito sobre a série a que ali se dá origem.
O olho abre. A pupila dilata. O primeiro enquadramento concebido por “Lost” é muito provavelmente o mais reconhecível no panorama televisivo. Uma posição confortável na memória colectiva que também se deve ao facto da série voltar a fazer uso do dito plano no decorrer do seu percurso, mecanismo esse que se viria a estabelecer como um dos seus traços característicos.
Recua-se até 1999 para atentar ao plano que catapulta “The Sopranos” e que tanto diz de antemão sobre a postura do seu protagonista. Tony Soprano (James Gandolfini) enquadrado pelas pernas de uma estátua feminina. As mulheres ser-lhe-iam constante, como influência maior e perdição. Ainda que o faça de baixo, observa-a com um senso de superioridade, olhar característico do seu machismo tão redutor do sexo feminino. Meros 4 segundos que são espelho da personagem.
“Six Feet Under” inicia a sua viagem não com uma personagem, mas sim com um anúncio publicitário que resume na perfeição o humor negro patente na série. Uma mulher imaculadamente vestida, apresenta um veículo com um movimento de mão elegante, sensual. Começa por acariciar a parte dianteira do veículo, enquanto a voz-off o adjectiva. Somente a meio do discurso se torna perceptível que se trata de um carro funerário. Arremesso directo à morte como negócio, ao luto como via lucrativa. Estava assim estabelecido o cerne de “Six Feet Under” logo nos primeiros segundos.
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Elegante, sofisticado, sedutor. Porque o seu ente querido merece o melhor em estilo e conforto.
O primeiro plano de “Mad Men” é do mais simples que pode haver e nem por isso parco em significado. A câmara move-se na direcção daquele que nos é ainda desconhecido, semelhante a tantos outros homens, espelho da época. A mestria num enquadramento por si só básico, passa pela escolha das costas da personagem como motivo de foco primordial. Fosse este indivíduo honesto consigo e com os demais, e talvez fizesse sentido um corriqueiro plano que se aproximaria gradualmente do seu rosto. Don Draper (Jon Hamm) é fechado em si mesmo. O movimento de câmara que se aproxima daquela incógnita, simboliza a nossa própria postura diante do protagonista. Um mero inverter do olhar da câmara a contar a essência de uma personagem.
Largando as três incontestáveis, continua a haver material de análise na presente década. “Mr. Robot”, merecedora de louvor por uma direcção de fotografia bastante característica, mandava a sociedade ir-se f***r logo no seu primeiro quadro. A narração de Elliot (Rami Malek) guia a câmara, que se distancia da janela para abranger cada vez mais homens sem rosto. Indivíduos sem feições definidas, que se mesclam uns com os outros. As silhuetas com o mundo nas mãos. Ao fundo? O ininterrupto capitalismo.
O primeiro sopro de “Westworld” entrega de imediato o protagonismo a um andróide. Se a dúvida quanto à origem viria a rondar certas personagens, no caso de Dolores (Evan Rachel Wood) não chega sequer a haver espaço para tal. “Bring her back online”, assim nos era contada a ausência de livre arbítrio. O cenário frio. O corpo roubado de dignidade. A postura rígida. As luzes acendem-se gradualmente, atribuindo ao cenário uma aura ainda mais artificial que ambienta a condição da própria personagem.
A grande fatia dos espectadores não entra numa série com um olhar analítico, pronto a perscrutar o primeiríssimo corte. Qual a piada nesse olhar castrador de emoções? A verdade é que existem produtos televisivos que optam por preencher o primeiro quadro com significado, seja esse atribuído a uma determinada personagem ou à temática-mor que se decide abordar.
Gostei! Já não me lembrava de alguns, efectivamente mostra bastante do “futuro” da série num só plano.
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Foi interessante recuar até ao primeiro plano e ver como em certos casos ganha ainda mais significado depois de já ter sido vista a série. Perceber que certas séries como “The Sopranos” e “Mad Men” tiveram logo o cuidado de nos piscar o olho quanto aos seus respectivos protagonistas.
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Muito interessante. De todos estes que mencionas, só me lembrava mesmo do início de Lost e SFU.
Não sei se viste BSG, mas aí também podíamos mencionar um primeiro plano, do episódio “33”, que continua a ser um dos meus favoritos e que conseguiu resumir tão bem o ambiente depressivo da série.
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BSG, ainda só vi a mini-série e uns 4 episódios
Mas estava a gostar bastante, em especial do episódio “33”. Em breve dedico-lhe de novo a devida atenção.
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Excelente crónica! De todas as aberturas que fazes referência, incluindo BB e Lost, apenas Utopia não vi 😀 Será a próxima após Six Feet Under?
Syrin, a abertura da mini série é excelente.
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Não sei se correria a aconselhar “Utopia” como a próxima, apesar de gostar bastante. Ainda assim vê-se relativamente rápido, somente 12 episódios. Mais uma daquelas perdas precoces. É sem dúvida um dos produtos a que mais facilmente rotulas como “único”. As personagens peculiares, a violência estilizada, a fotografia belíssima e tão característica, as cores, a banda-sonora (ainda dou por mim a ouvi-la), etc.
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