Crónicas (T3): Digressões pelo admirável mundo das notícias

Das questões que mais me fascinam na televisão são as notícias e os programas noticiosos. Estes talvez sejam os últimos programas verdadeiramente “televisivos”, no sentido em que continuam a ser território da caixa de televisão.

Seremos poucos aqueles que fazem streaming de noticiários ou debates político-sociais ou económico nos tablets, smartphones ou pc’s. Nunca vi ninguém num consultório médico, agarrado ao smartphone com os auscultadores no ouvido, a ver a opinião de Marques Mendes enquanto espera pela sua vez para uma destartarização que nos garantem indolor e, muito menos, alguém num transporte público apinhado de gente a acompanhar o debate entre uma das Mortágua e o Paulo Rangel.

E quantos de nós, mais recentemente, interromperam aquele amigo empolgadíssimo com o Sporting-FC Porto e o festival de golos falhados dos azuis e brancos, para perguntar “Epá  quantos vereadores meteu o Medina em Lisboa e o Moreira no Porto, que já atingi o limite do meu plafond?”, sendo retribuído com um daqueles olhares furibundos que traduzem conselhos de reprodução impossível mas que certamente significam a invasão corporal por objectos orgânicos em partes sensíveis da anatomia.

Reparem na alteração de nomenclatura a que assistimos nos últimos anos. Todos aqueles que têm mais de 25-30 anos, cresceram a referir “as séries de televisão”, “os documentários televisivos”, os “telejornais”. Agora tudo mudou e falamos em “séries de ficção”, “documentários” e “notícias”. Aquela que mais impacto teve na apropriação lexical, foi claramente a mudança de “séries de televisão” para “séries de ficção”, exactamente por ter dado massivamente o salto para um conceito de multiplataformas. Temos discutido muito este assunto pelo TVD em diversas rubricas e crónicas. Sejam os canais clássicos de televisão que apostam cada vez mais nos conteúdos streaming, seja pela criação de plataformas como o Netflix, o Hulu ou mesmo a Amazon que sendo baseadas na net produzem conteúdos tradicionalmente pertença da televisão.

E pelo mesmo caminho seguem os documentários de prestígio, veja-se a aposta que, por exemplo a National Geographic tem vindo a fazer, mas não só. As notícias ou os programas associados como tal ainda tem um longo caminho a fazer, não sendo tão notória a transição e a adaptação. Diferente é a transição do conceito dos jornais ou magazines noticiosos clássicos para a plataforma digital, como aconteceu com os muito interessantes Huffington Post e Politico, nos EUA, ou o Observador em Portugal. No suporte televisivo-digital tal ainda não se deu na sua plenitude.

E, na realidade, estes são os programas de prestigio da televisão mais do que as telenovelas (agora “novelas” ou “ficção nacional”) ou dos reality shows (que são outro caso muito curioso que tem-se vindo a adaptar de forma impressionante, reflectindo os interesses da sociedade). O cabo demonstrou ser o poiso ideal para estes programas, com canais de televisão a aparecerem exclusivamente dedicados a tais conteúdos.

E é aqui na arena “canais generalistas” vs “canais dedicados”, que encontramos elementos perniciosos e fracturantes quanto à oferta e qualidade. Nos canais generalistas os programas noticiosos apostam claramente no espetáculo e na superficialidade. São irritantes os directos por causa do Cristiano Ronaldo, frustrantes as declarações políticas ou segmentos noticiosos descontextualizados, decepcionante a leveza com que se dão notícias de carácter internacional, nojentos os acompanhamentos de catástrofes nacionais (e internacionais) nos directos que são feitos, irresponsáveis a revelação de notícias ou informações delicadas, e idiotas os esgares e entoações de vários dos pivots noticiosos. Há claramente uma aposta na notícia espetáculo, de preferência assente no choque das audiências, que não é serviço público e que tenho dúvidas sejam eticamente responsáveis.

Nos canais dedicados e exclusivos das opções cabo (com excepção da RTP3, disponível no digital e um passo enorme na democratização e acesso à informação) tal também está presente. Vamos ignorar o CMTV que assenta o seu conceito e conteúdo no espetáculo e no choque (mas vejam as suas notícias por curiosidade sociológica, a seu tempo lá voltarei). Falemos dos canais mais clássicos.

O choque e o espetáculo está presente, mas há uma diferença no tom com que é transmitido, mais sereno e mais contextualizado. O espaço e a economia do tempo é também diferente; aqui há tempo para aprofundar os conteúdos e as notícias. E geralmente fazem-no de forma ajustada e com qualidade. E o tempo disponível é a grande vantagem destes canais. No meio da mediocridade que transmitem e transitam dos canais mãe clássicos, há espaço para outras coisas, mais sérias, mais profundas e mais… informativas.

Se queremos saber aquilo que se passa a nível nacional, é aqui que encontramos essa informação. Se queremos uma maior quantidade de informação a nível internacional, ficamos mais bem informados nestes canais. Mas ligeiramente. E este é outro dos paradoxos. Cada vez mais estes canais destacam a política nacional, dando um olhar menos crítico e crescentemente ligeiro do que se passa a nível internacional. Para sabermos mais temos que ir a canais de outras paragens seja a CNN ou a BBC que, por sua vez, sofrem do mesmo problema: o olhar para o umbigo.

Num mundo crescentemente global a informação é essencialmente nacional e muito provavelmente o último verdadeiro bastião da televisão no seu sentido clássico e nobre.

 

 

Um pensamento em “Crónicas (T3): Digressões pelo admirável mundo das notícias”

  1. “… sendo retribuído com um daqueles olhares furibundos que traduzem conselhos de reprodução impossível mas que certamente significam a invasão corporal por objectos orgânicos em partes sensíveis da anatomia.” ah ah ah ah foi difícil ler o resto depois deste parágrafo!

    Ainda assim, no que toca à questão da abertura para as notícias estrangeiras, acho que somos claramente mais evoluídos que por exemplo a vizinha Espanha. Não vamos a imenso detalhe mas facilmente estamos informados do que se passa com o Brexit, com a Catalunha (todos conhecemos agora o artigo 155), etc.

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