Este artigo não pretende reacender picardias de “televisão versus cinema”, porque “Murder on the Orient Express” tem uma boa versão trazida ao grande ecrã pelo mestre Sidney Lumet (mas está longe de ser um dos seus melhores filmes). Este artigo é sim um desabafo relacionado com a forma como se deturpam ícones para agradar (que é como quem diz “sacar-lhe o dinheiro”) a uma geração, imberbe em ideias e facilitista em conceitos, que claramente não os merece.
Não consigo encontrar adjectivos simpáticos para a versão de Kenneth Branagh do clássico de Agatha Christie que estreou recentemente no cinema. Talvez um, destinado ao elenco que o britânico conseguiu reunir: fantástico. Aliás, foi por este elenco que me senti incentivado a assistir ao filme numa sala de cinema. No entanto, ter um Johnny Depp, uma Michelle Pfeiffer, uma Judi Dench, um Willem Dafoe, e muitos outros nomes sonantes, não garante muita credibilidade a esta adaptação. Por mais que façam o melhor que podem com aquilo (guião) que lhe entregaram, este é um dos piores filmes que vi este ano. Trata-se de um típica exploração hollywoodesca, onde se tenta transformar heróis clássicos em super-heróis ao estilo da BD, em mais um descarado apelo dos estúdios junto desta nova geração para que lhe encham os bolsos mais um bocadinho.
Este é um Poirot transvestido. Ele corre, salta, luta (sim, anda mesmo à pancada!), manda piadas corriqueiras e, pior ainda, nunca consegue transmitir ou demonstrar que estamos perante o melhor detective do mundo. “Little grey cells”? Esqueçam lá isso, não há! O que há, em vez disso, é um dos bigodes mais ridículos de todos os tempos, personagens a quem lhes trocam as etnias, porque já se sabe que, por estes dias, se não se preencher a quota cai o carmo e a trindade, e um final descaradamente copiado da série de televisão (que é diferente do final original), mas que nunca alcança o impacto daquele porque não executa devido enquadramento (o final da série está intimamente relacionado com o prólogo; aqui, não!). Ainda por cima, a versão de 2017 de “Murder on the Orient Express” acaba, como não podia deixar de ser, com o já esperado piscar de olhos à sequela ou, Deus nos acuda, a uma nova série de filmes baseada nas obras de Christie sobre o belga ficcional mais famoso de sempre. Medo.
Em vez de gastarem sete euros pelo bilhete, ao que acresce a deslocação à sala, calcem as pantufas, refastelem-se no sofá e vejam antes a versão do ITV (que já passou inúmeras vezes no FOX Crime, que existe em DVD no mercado nacional e se encontra – a temporada completa, ainda por cima – a um preço inferior ao bilhete do cinema, e que existe através das vias alternativas em que não têm de pagar nada). Pode não ter uma constelação, mas tem Jessica Chastain (pré-super-estrela), David Morrissey, Hugh Bonneville, Barbara Hershey, Toby Jones e, claro, David Suchet, o único e eterno verdadeiro Poirot.
Mais do que pela força do singular e intrincado mistério elaborado por Christie, a versão televisiva britânica de “Murder on the Orient Express” triunfa por questionar as noções de Justiça socialmente impostas e também pelo impacto dramático resultante do dilema moral a que personagem principal é sujeita e lhe é pouco familiar (um dos exemplos de como tomar certas liberdades criativas na adaptação de uma obra nem sempre corre mal).
Não me considero adverso a adaptações, remakes, spin-offs ou sequelas e acredito que a liberdade criativa é determinante para o recontar de uma história. No entanto, quando o que deveria ser uma expressão artística existe apenas como mero veículo comercial, onde não se reconhece qualquer virtude e se denota apenas um aproveitamento duma instalada predisposição da generalidade do público para “enlatados”, não há como evitar uma certa revolta.
Um pensamento em “O assassínio de um ícone”