Nos últimos anos, a forma como o sexo em televisão é filmado e visto, tem vindo a alterar-se substancialmente. Diversas séries que vão sendo transmitidas têm passado essa ideia. Alguns artigos publicados nos EUA, nas últimas semanas têm vindo a debater esse assunto, de forma curiosa.
O título desta Crónica – assumidamente provocatório – não procura estabelecer uma ligação voyeurística com as mulheres que veem as cenas de sexo, ou como as veem. Esse tema não me parece nada interessantes. Será antes sobre como a emergência de novos autores tem impacto na recriação do sexo na ficção. E essa questão, sim, poderá revestir o tema de um interesse acrescido. No entanto, abordar o tópico, além de delicado, poderá não ser bem entendido, pois é a perspectiva de um homem, sobre a forma feminina de recriar o sexo na ficção.
De forma mais clara: há duas formas de ver o sexo. A mais óbvia é a do espectador que assiste a uma determinada sequência numa série. Só que essa sequência para ser vista tem que ser filmada. E essa é outra forma de “ver”. É o “ver” para “transmitir” e é essencialmente cultural e de género. Na ficção estilizamos e idealizamos o amor, a paixão e o sexo. Há uma cartilha, com regras básicas, sobre aquilo que o espectador quer ver. E essa cartilha é apropriada por quem escreve e por quem filma, para transmitir a sua visão. Essa visão é transmitida e, finalmente, vista pelo espectador.
O campo da psicologia tem feito experiências interessantes nesta área: um acontecimento testemunhado com duas pessoas de culturas diferentes é contado de forma diversa. Da mesma forma, um acontecimento contado por pessoas de géneros diferentes é, igualmente, contada de forma diversa.
Assim, a forma como nós espectadores em geral vemos o sexo é a forma filtrada por um dado conjunto de pressupostos e filtros humanos, o tal realizador e o argumentista. Numa sociedade eminentemente masculina que assentou na objectificação da mulher e do corpo da mulher (e já agora do sexo) aquilo que a ficção nos transmite é um ponto de vista masculino da sexualidade.
Confesso que como espectador, tendo-me apercebido que havia alterações na forma como a questão sexual era tratada em televisão, nunca me tinha apercebido do quão fundo essa alteração fora e o muito mais que, logicamente, estará para vir fruto das alterações sociodemográficas existentes.
Vamos por partes, tentando ser o mais claro possível.
Nos últimos anos temos cada vez mais mulheres a filmarem ficção e – mais importante – a escreverem ficção. Isto num universo maioritariamente dominado pelos homens, aliás como a questão mediática do assédio sexual vinda dos lados de Hollywood tem vindo a provar sobremaneira nestas últimas semanas.
A ascensão das mulheres resulta não só da alteração de mentalidades num meio paradoxalmente demasiado conservador, mas igualmente das alterações a que estamos a assistir. Hoje há cada vez mais mulheres em cargos de decisão e cada vez mais mulheres formadas (em muitos países são a maioria dos alunos do ensino superior). É óbvio que seria uma questão de tempo até que chegassem aos cargos chave da indústria criativa do cinema e da televisão. Aliás, o estranho é que tenham demorado tanto tempo a lá chegar e ainda estejam insuficientemente repartidas naquele meio.
Veja-se a ficha técnica da maioria dos filmes e séries que se vão produzindo e atente-se na desproporção de género existente. Mais: lembremo-nos dos nomes dos grandes realizadores e vejam quantas mulheres vêm à cabeça nos primeiros segundos. Ou quantas mulheres ganharam o Óscar para realizador ou argumentista. E, vá lá, um pouco mais de esforço e vejam na música, na fotografia… Ok, no guarda-roupa já se encontram bastantes.
Uma breve pesquisa diz-nos que em oitenta anos de cerimónia dos Óscares, apenas quatro mulheres foram nomeadas para o prémio de melhor realizador (a primeira em 1977), e apenas uma o venceu (em 2009). E que outros sete filmes dirigidos por mulheres foram nomeados para melhor filme do ano, sem, no entanto, terem sido nomeados para melhores realizadores.
Como espectadores de ficção recente peguemos no caso que ou se ama ou se gosta muito: “Game of Thrones”. A forma clássica de se “ver”/”transmitir” é claramente masculina: mulheres nuas, enfoque dado às formas femininas, sexo viril (de homem), submissão da mulher. Isto numa série onde as mulheres até dominam. Fiz um exercício muito superficial de procurar um episódio realizado por uma mulher ou, pelo menos escrito por uma. Não encontrei nenhuma, mas admitindo que possa haver é um número muito desproporcional.
No campo oposto está “Outlander” uma série muito bem produzida (com a qual antipatizo) e no qual há episódios escritos e dirigidos por mulheres (tendo como ponto de partida uma série de livros de grande sucesso escritos igualmente por uma mulher).
Num muito interessante e provocador artigo publicado há algumas semanas por Kenny Herzog, intitulado “Why is there suddenly so much semen on television?”, o autor aborda estas e outras questões a pretexto do facto de termos tido em poucas semanas cinco ejaculações masculinas nos ecrãs de televisão, nomeadamente em “Girls”, “Insecure”, “The Deuce”, “The Girlfriend Experience” e “Big Mouth”, algo raramente visto na televisão.
Este, diz com algum exagero, será o ultimo tabu na recriação televisiva do sexo. Estas séries têm a óbvia particularidade de terem sido escritas e/ou realizadas por mulheres, podendo entender-se – nas palavras dele e tradução minha – como “uma inversão da típica objectificação da mulher”, apoiando-se igualmente numa curiosa opinião de uma académica especialista em cinema e televisão que refere tal poder representar um nivelamento dos géneros em ficção na exposição dos corpos masculino/feminino ou então num sinal de maturidade dos espectadores para uma narrativa mais complexa.
Igualmente curiosa é que tal tem sido potenciado em canais fechados, nos quais as fortes restrições implementadas pela autoridade norte-americana que regula as transmissões televisivas é mais permissiva na sua supervisão. Esta impõe um código de conduta apertado que exclui determinadas sequências ou palavras e restringe a liberdade criativa, é muito mais permissiva nos canais por cabo a pagar, dando liberdade criativa que permite pisar o risco, ou, como outros o dirão, incentiva a liberdade criativa e um mais correcto retrato da realidade.
Claro que há outras formas de limitar aquilo que pode ser exibido, mesmo nos canais por cabo. O FX e o AMC, têm cláusulas escritas nos seus contratos com os principais patrocinadores que impedem um conjunto de “liberdades criativas” transgressoras aos seus olhos.
A realidade é que estas mudanças no feminino do audiovisual vieram para ficar. Mesmo nos canais generalistas, em sinal aberto, assistimos a uma mudança na forma como os personagens principais são retratados. Hoje temos mais mulheres protagonistas e mais mulheres maduras na ribalta. Poderão dizer que ainda não é suficiente, mas é uma questão de tempo. Aliás, os assuntos e o olhar introduzido por autoras como Shonda Rhimes nas suas séries mostra essa tendência. Aqui não só as mulheres ocupam um espaço considerável, como muitas das temáticas são femininas.
Isso interessa para alguma coisa?
Acho que sim.
Numa sociedade muito condicionada na sua visão do mundo e da sociedade pelo audiovisual, a chegada de mulheres a posições de destaque na sociedade e, em especial, na indústria criativa contribuirá para uma forma diferente de ver o mundo e de lidar com questões. Se é boa ou má, não sei, mas certamente será diferente.
Belíssimo texto.
É um tema interessante. Penso que será com naturalidade que a visão maioritariamente masculina de tudo seja “obrigada” a partilhar o espaço com versões femininas. Faz todo o sentido. E serão muito bem vindas.
Acima de tudo quero qualidade.
Se o orgasmo de The Girlfriend Experience for o que estou a pensar (cena da gravação por telemóvel do fellatio) fiquei pasmado com ao realismo dessa cena. Não estava à espera.
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Pelo que li dessa e de algumas das outras cenas, a receita é simples: puré de batata. Quanto ao que verdadeiramente interessa, acredito que os próximos anos continuarão a aprofundar as alterações (e qualidade) do audiovisual. pelo menos é um educated wishful thinking.
A ver vamos…
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