“Black Mirror” olha-se ao espelho naquele que lhe pode vir a servir como derradeiro capítulo.
Nunca antes a série se denunciou tanto a si mesma na narrativa. Sim, é certo que inúmeras ligações já se viam descortinadas nas temporadas anteriores. A título de exemplo, o característico teste de gravidez usado em “Be Right Back” e “White Christmas”. Se é inegável que os haviam, esses easter eggs que colocam o espectador na ânsia do pára-arranca e recua, nunca foram além de um mero piscar de olhos a um universo partilhado. Tudo muda com “Black Museum”, único episódio a adoptar o “negro” da série que lhe é casa. A quarta (e última?) temporada culmina no museu albergue aos crimes cometidos no curso do pesadelo tecnológico. Metanarrativa que dispõe os artefactos e nos convida a um revisitar: uma das abelhas mecânicas de “Hated in the Nation”; o tablet símbolo à emancipação que ocupa os minutos finais de “Arkangel”; a banheira onde decorre um dos crimes cometidos pela protagonista de “Crocodile”; a máscara de esqui usada por um dos caçadores de “White Bear”; etc.
Se o dito museu do crime é teia de auto-referência, o homem que lhe serve de dono e guia parece aproximar-se do próprio criador da série, apto a contar cada uma das histórias que tão bem conhecemos. Visita guiada que adultera factos a seu bel-prazer, pontuando-a com uma erecção a mais e rejeitando a ínfima possibilidade do homem por trás da cortina poder ser inocente. The Man Behind the Curtain, título alternativo a um episódio que não o pede. A cortina, o embuste de “The Wizard of Oz”, que aqui promete a maior das atracções mas entrega animal dócil e encarcerado. O prazer de infligir dor sem qualquer consequência. A alavanca como imagem máxima do sadismo. Não indo tão longe como em “Black Mirror”, deste lado de cá o ser humano age como julgador e carrasco, sempre pronto a apontar o dedo numa situação que não o contempla.
“Black Museum” exibe uma estrutura bastante semelhante à mestria de “White Christmas”, ainda que no especial de natal haja uma maior fluidez entre as pequenas histórias contadas. Ambos episódios moldados no subjectivo de quem os narra. A primeira história, baseada no conto de Penn Jillette “The Pain Addict”, merecia bem mais tempo de antena. Merecia até mesmo um episódio a solo. O crescendo da personagem principal funcionaria ainda melhor ao desenrolar-se num intervalo de tempo maior, propício a períodos de loucura e desespero ainda mais vincados. David Cronenberg na cadeira de realização, esse é o sonho. Da busca de prazer (“Crash”, 1996) ao body horror que se lhe seguiria como resposta, não tenho dúvidas de que seria um episódio memorável no currículo de “Black Mirror”.
A história que se segue parece querer reciclar um pouco do cenário de horror de “White Christmas”, ao recorrer às pausas que do outro lado tanto desespero causam pela falta de propósito. A crueldade maior surge ao ver-se transferida para o interior de um macaco de peluche, capaz de se exprimir somente por via de dois meros emoticons, numa clara crítica à comunicação virtual que nos categoriza emoções. Não o sendo num sentido directo, há no entanto um virar de costas do filho à mãe, dinâmica anteriormente trabalhada em “Playtest” e “Arkangel”. Como qualquer outro brinquedo rapidamente cai no esquecimento, nesta que é uma versão de horror de “Toy Story”. O aliar desta personagem a Nish (Letitia Wright) é um dos raros laivos de esperança numa série tão pessimista.
Com um twist bem conseguido, “Black Museum” parece executar uma despedida. Pode não se encontrar ao nível dos episódios com toque de génio, mas é certamente uma meta conscienciosa que deixa um sorriso no rosto pela ousadia de jogar com a série como um todo. Ainda de futuro incerto, faz-se uso do botão: Monkey needs a hug…