Honrar Pai e Mãe

Os 10 Mandamentos

A pretexto dos dez mandamentos, um agnóstico assumido pega nas regras essenciais da religião que moldaram o mundo ao longo de séculos e aplica-os à ficção televisiva.

Desde “Parenthood” que ficámos serialicamente órfãos de boas séries sobre a importância da família na vida. Claro que continuam a existir boas séries sobre a família, má séries sobre a família e séries que usam a família apenas como pretexto para tudo o resto, não lhe conferindo a densidade dramatúrgica que aquela merece.

E depois existem as outras. Aquelas séries em que a família, ou melhor, o Pai e a Mãe estão ausentes porque não interessam.

E qual é a situação nas séries que actualmente são transmitidas e se retrata com (alguma) seriedade a família e o núcleo familiar? Não tenho a pretensão de falar de tudo ou de todas até porque o meu conhecimento será limitado e não acompanho tudo aquilo que é produzido. Mas algumas reflexões poderão ser colocadas em discussão.

Desde logo uma constatação óbvia: os pais e as suas idiossincrasias são um dos leit motiv de muitas (grande parte?) das sitcoms que se produzem. E não é de agora, antes constitui uma premissa clássica deste dispositivo ficcional. De entre as mais sérias – aquelas que vai valendo a pena acompanhar independentemente dos seus altos e baixos criativos falemos um pouco de “Black-ish”, “Modern Family”, “The Goldbergs”, “Life in Pieces” e “Fresh off the Boat”. Pelo número é uma amostra daquilo que predomina neste tipo de histórias. Aliás, só este pequeno número já assusta pela expressão.

E como são tratados o pai e a mãe, naquelas séries? Com honra? Respeito reverencial? Caricatural? Bonomia? Ou mediocremente?

Sendo séries para a Família e bem dispor o espectador, não o são ofensivas no tratamento dado aos progenitores. No entanto, por vezes – muitas vezes! – roça o caricatural. Está neste último caso a figura paterna de “Black-ish”, um bem-sucedido empresário da área do marketing, com uma família extensa de múltiplos filhos. Como muitos dos pais da ficção sitcómica é um adulto muitas vezes infantilizado, histérico, inseguro. No fundo uma caricatura de um adulto (ir)responsável devidamente balançado nos seus comportamentos pela sua mulher, muito mais ponderada e perspicaz que o marido. Ou seja, o elemento estável da família e o seu farol (outro lugar comum: na ficção a Mulher-Mãe é sempre o personagem ponderado; na vida real também). Para complicar o protagonista-Pai, tem os seus próprios pais a viverem na mesma casa. E aqui a caricatura aumenta exponencialmente: os dois são os verdadeiros disfuncionais da família, sendo pretexto para retratar situações delicadas como a violência doméstica, a infidelidade, a instabilidade emocional, o alcoolismo. Na verdade, são os pais do protagonista que são os personagens reais; tudo o resto dos episódios são fábulas morais.

Por sua vez, a estafada “Modern Family” – claramente a mais fraca do conjunto enumerado – multiplica-se em núcleos familiares, cada um com a sua mania e características próprias. Em dois dos núcleos é, uma vez mais, a Mulher-Mãe o personagem mais ponderado. Num caso temos o sonhador Phil, o personagem cartoonesco da série (mais do que caricatural), devidamente temperado pela Mulher, muito mais racional. Noutro núcleo, o casal gay, com uma filha. E aqui reside o elemento mais provocador da série (nos seus primórdios, pelo menos) ao trazer para uma série de grande público um casal gay que adopta. Dois pais com uma filha, que sofrem dos mesmos problemas que qualquer progenitor tem e ainda sofre as discriminações sociais (embora atenuadas). E reside aqui uma das situações provocadoras deste artigo: o respeitar pai e mãe, num núcleo familiar de dois pais. Felizmente que cada vez menos essa questão se coloca. E felizmente, que se vai percebendo que socialmente, nada mais interessa que não seja a estabilidade emocional e afectiva do núcleo familiar. Tudo o resto é a espuma do preconceito.

O último núcleo, o do progenitor-Pai-Avô acaba por ser o mais caricato, muito devido à Mulher-Mãe, uma colombiana de formas voluptuosas, acentuada pronúncia hispânica e metáforas sobre a sua vida passada muitas vezes hilariantes. Aqui joga-se claramente com a ideia ou os pré-conceitos que os americanos têm dos colombianos, num fosso cultural de difícil resolução. É uma mãe-galinha, casada em segundas núpcias com um homem muito mais velho e com dinheiro. Mas não é isso que conta. Onde se poderia pensar que era um golpe do baú, temos uma verdadeira relação afectiva. E, apesar da diferença de idades, e do carácter explosivo da colombiana acaba por ser ela (uma vez mais) a voz da razão.

“The Goldbergs” talvez seja a mais conservadora de todas as apresentadas e aquela que ligeiramente descentra o foco. Aqui são os filhos os verdadeiros protagonistas e não os pais. Mesmo baseado nas memórias de um dos filhos sobre os maravilhosos Anos 80, os pais são caricaturizados talvez de forma excessiva. O Pai é a única fonte de rendimento de uma família estável, mas é preguiçoso, gosta de descansar na sala, em frente à televisão, sem calças e… em sossego, algo impossível com três filhos em constante guerra. Por outro lado, a Mãe, claramente uma mãe-galinha, controladora, dominadora e que tem que ser o centro de tudo, impondo-se sobre todos. Mas, no final é aos dois, que os filhos recorrem sempre. E, aquele que surpreendentemente mais impacto tem, é o elemento mais discreto da família: o Pai.

Completamente diferente é “Life in Pieces”, de longe a minha favorita. É daquelas coisas que assenta na empatia que se cria, muitas vezes (quase sempre sem se perceber porquê). Uma estrutura na linha de “Modern Family”, mas mais refrescante. Em vez de três núcleos familiares temos quatro. Os patriarcas, um ex-piloto a caminho da senilidade e a infantilizar-se e uma psicóloga que (quase) sempre é a voz da razão, mas muitas outras vezes do caos.

Os outros três núcleos, são os dos filhos e repectivas famílias. Uma dona-de-casa casada com um médico, classe média-alta, gosta de uns copos (tal como Claire em “Modern Family”) e alguma malandragem sempre fielmente com o seu bonacheirão marido. Os três filhos, a eterna fonte de desastres e preocupações.

O filho falhado que se separa da mulher e vive na garagem dos pais, até se apaixonar por uma latina (outra?). E, finalmente, o filho mais novo, mimado e sonhador, a eterna criança, casada com uma mulher de sucesso que nele só poderá ter-se encantado pelo seu espírito infantil. Todos, mas todos, recorrem aos pais.

Em cada uma das séries faladas até aqui, será esta aquela onde a relação com os pais (em dois núcleos que têm filhos) é a mais ternurenta e respeitadora: os pais são encarados com alguma reverência e gratidão.

Finalmente, neste conjunto de sitcoms que chamo de “utopias”, temos “Fresh off the Boat”, a história de uma família americana de origens asiáticas. O mesmo sonho americano recorrente em todas (com menor dimensão em “The Goldbergs”), a década de 1980 de um ponto de vista do choque cultural mais do que (mas também) intergeracional. Aqui temos a caracterização da “mãe dragão”, possessiva, egoísta, que faz tudo pelos filhos mesmo que muitas vezes o tudo seja aquilo que ela quer para si. E, no final, uma reverência respeitosa sobre a figura dos pais, mesmo que o Pai seja o personagem apagado e temeroso da sua mulher.

Se aquele conjunto de sitcom são as das utopias em que os núcleos familiares, com mais ou menos propriedade, giram em torno dos seus pais e tudo acaba em bem – mesmo as lições morais que culminam com as atribulações – temos um outro conjunto do retrato americano e da família ocidental, que constituem autênticas distopias, embora bem-dispostas e muitas vezes com mensagens profundas.

Falamos de “Family Guy”, “American Dad” – e reparem nos nomes das séries a remeter para as famílias e para as figuras paternas – e, claro, não podia deixar de ser “The Simpsons”. Comecemos por esta última distopia familiar por demais conhecida de todos.

Três filhos que infernizam os pais. Ou melhor um. Os outros dois raramente. E os pais, um falhado que só pensa em descansar e ir ao bar, a dona de casa que poderia ter sido algo, mas pela família nunca o foi. O tratamento dado aos pais é diverso e díspar. Por um lado, temos a mãe como elemento da sagacidade e ponderação (mais uma vez e sempre, pois tal é algo comum em todas as séries aqui referidas mesmo quando diabolizadas) ele é alvo de chacota e de falta de respeito pelos filhos. Sabemos que é uma sátira à família e à sociedade americana, mas que Homer Simpson talvez seja o pai mais desrespeitado de toda a história da televisão, é uma realidade.

“Family Guy” e “American Dad” têm o mesmo autor e habitam o mesmo universo caótico. Há uma similitude nas figuras parentais: as mães são imperfeitas, mas mais equilibradas que os maridos; eles completamente caóticos, exagerados, caricaturais, pouco inteligentes e… idiotas. São famílias aparentemente disfuncionais, mas que funcionam. Quase sempre triunfa o afecto amargo (mas, vá lá, afecto).

Uma constatação e pergunta final: nestas séries as utópicas são em imagem real, as distópicas são em animação. O que quererá isso dizer? Que aquilo que ambicionamos transmitimos como real, e aquilo que lemos na sociedade, embora exagerado, será dado em imagem animada? Precisaremos desta barreira visual que convida a aceitarmos melhor que o retrato dado pela animação só é aceitável porque temos o “desenho animado” e não a realidade e choca-nos menos do ponto vista das concepções morais e sociais do que em imagem real? Ou que só podemos desrespeitar os pais em animação e nunca em imagem real?

Claro que muitos poderão questionar e dizer: “então e ‘Shameless’?”. Bom essa é uma outra e completa história distópica que há muito deixei de acompanhar…

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