A pretexto dos dez mandamentos, um agnóstico assumido pega nas regras essenciais da religião que moldaram o mundo ao longo de séculos e aplica-os à ficção televisiva.
Tenho para mim que se a população do mundo se medisse pela quantidade de mortes em ficção transmitida no pequeno ecrã, a humanidade estaria extinta. De facto, grande parte das séries que são produzidas apostam no efeito de provocar baixas nos seus elencos, normalmente nos secundários ou nos figurantes.
No entanto, as mortes neste universo televisivo não são todas iguais. Algumas são mortes assépticas, ou seja, para não chocar audiências nem afastar patrocinadores nas sequências de morte quase não temos sangue. Mas depois temos as outras, as gore ou gráficas na qual as mortes são ilustradas por litros (melhor, hectolitros) de sangue em quantidades tais que nos fazem deslocar de um patamar e realismo para um outro surreal.
Normalmente as séries que apresentam mais quantidade de hemoglobina são séries violentas (algumas – raras – hiperviolentas), nas quais quase que há um culto na encenação da morte e da violência que conduz a esse ficcional terminar da vida. Com sinceridade, apesar de rapidamente entender aquelas séries como produtos coreografados e escapistas, no qual o dialogo violência/morte pouco mais é do que BD em movimento, essa opção estilística (mais do que artística) preocupa-me.
A compreensão daquilo que é real em ficção ou funcional na realidade tem vindo a ser toldada nos últimos anos. Acredito que pela velocidade das transformações sociais, seja devido a uma dedicação ao trabalho que não permite acompanhamento familiar, a desestruturação (e reestruturação) dos núcleos familiares, assim como com a redução das famílias extensivas para famílias cada vez mais reduzidas e isoladas, as novas gerações expostas à hiperviolência caricaturizada tardem em amadurecer nos conceitos de violência e morte.
É que a morte, sob a forma de “matar”, sempre foi o grande pecado, o grande estigma social e uma das traves mestras da educação moral de toda a sociedade ocidental. Mas a acção de “matar” banalizou-se! Entra-nos pela televisão adentro, tanto na ficção (sob a forma asséptica como na forma gráfica) como nos meios noticiosos, no qual as mortes são apresentadas cada vez mais na sua (terrível) dimensão. E tal esbate a noção daquilo que é proibido, ao banalizar a acção e a consequência.
Esta é uma questão interessante e que tem vindo a ser levantada por muitos analistas de ficção televisiva, mas igualmente pelos seus agentes. Recentemente, o criador de “12 Monkeys”, Terry Matalas, questionava se o facto de estarmos a registar um número nunca antes visto de mortes em televisão e, em especial, de personagens com impacto nas séries não estaria a provocar uma dessensibilização nos espectadores, com óbvios impactos na vida real. E, pior, muitas vezes as mortes encenadas são-no pelos motivos errados: atrair audiências e/ou agradar a audiências.
Num interessante artigo da Vox, escrito por Caroline Framke, Javier Zarracina e Sarah Frostenson, essa questão é aflorada sendo analisada de forma muito interessante e exaustiva o número de mortos da temporada 2015-2016, na ficção dos diversos canais da televisão dos EUA, tendo como proposta de amostragem os personagens que apareceram num mínimo de três episódios da série daquela temporada, em horário nobre ou num canal de streaming. Os números são avassaladores, saldando-se o body count em 242 personagens que perderam a vida.
Mas a análise – repito – exaustiva, não se ficou por aqui. Igualmente analisou as baixas por género, opção sexual e raça, com as seguintes proporções:
– 56% foram de personagens masculinos, enquanto 44% dos femininos;
– 42% de homens brancos heterossexuais, e 24% mulheres brancas heterossexuais;
– 26% das restantes opções sexuais;
– 10% de mulheres LGBTQ e 3% de homens LGBTQ.
O estudo incidiu igualmente nas formas de morte mais recorrentes: 26% mortos a tiro, 16% por esfaqueamento, 9% por suicídio, e os restantes números distribuíram em proporções minoritárias nas mais variadas formas estando identificadas: mortes por causas sobrenaturais, doença, explosão, envenenamento, asfixia e espancamento.
Além das questões do exagero do número, pode-se igualmente questionar a do preconceito na escolha dos personagens que morrem/são mortos. E os autores fazem-no a chegando a conclusões interessantes que valem a pena a leitura.
Virá à cabeça a série do costume, claro!, que tem um nível de corpos agonizantes ou sem vida, espalhados pelos sete continentes onde se desenrola a acção, incrível. Assim o será, mas de acordo com aqueles critérios e naquela temporada (2015-2016), “Game of Thrones” viu partir sete personagens, enquanto “The 100” disse adeus a oito, tendo a série que mais baixas registou, despedindo-se de onze. O vencedor foi “Scream Queens”.
Intuo que a última season da televisão americana tenha tido números mais elevados. As audiências a isso obrigam, até porque a morte ficcional já está banalizada.
De uma forma mais global, procurei identificar números mais específicos. Não é fácil, pois para se ter uma contagem ilustrativa é necessário que a série tenha inúmeros fãs. Desta forma, voltamos (agora e sempre!) a “Game of Thrones” que é escrutinada por fãs e meios de comunicação social. A mera pesquisa, dá-nos uma multiplicidade de sites que procedem ao seu body count embora com números diferentes. O Washington Post (https://www.washingtonpost.com/graphics/entertainment/game-of-thrones/?utm_term=.4f452cf2ab25), fez uma profunda análise das primeiras seis temporadas (vale a pena espreitar). Os números são impressionantes: 1.243 mortos (1ª Temporada: 59, 2ª Temporada: 130, 3ª Temporada: 87, 4ª Temporada: 181, 5ª Temporada: 246, 6ª Temporada: 540!!!!!!!!!!!!!!!).
Mas os números impressionantes não acabam aqui. O site The Verge (https://www.theverge.com/2017/6/14/15794436/game-of-thrones-onscreen-death-toll-count-estimate), foi mais longe e incluiu as baixas provocadas pelas guerras e conflitos retratados na série, durante as mesmas seis temporadas, e os números atingem os 150.966 mortos. Com a sétima temporada deverá ter atingido um número ainda maior. Ou nem por isso, pois não sei se poderão contabilizar a morte daqueles que estão mortos e regressam (mais ou menos) à vida.
No entanto, apesar da espetacularidade dos números de GoT, independentemente das formas como se contabilizam, há outra série que perdura na minha memória pelo número de mortes que provocou e, especialmente, pela forma como as encenou. Falo de “Sparatacus”. Os números são elevados. Apesar de não ter encontrado muitas referências contabilísticas, aparecem indicações de que a média de mortes por episódio foi de 25!!!!!, superando em muito as directas, encenadas na maioria das séries (ou mesmo totalidade).
No entanto, naquela série, aquilo que me ficou na retina foi a coreografia da encenação das mortes. Considero que havia um culto da forma como se matava e de como se morria, quase como se fosse arte. Encenado, até à exaustão, com os jorros de pingos de sangue a serem milimetricamente direccionados para se conseguir um efeito estético pretendido. No fundo, uma volúpia sexualizada do acto de matar e de morrer; volúpia sexual essa que encontra eco, na forma como os corpos musculados eram exibidos e como o próprio sexo era encenado. Provavelmente as sequências de sexo também serão das que maior número se conta em qualquer série televisiva. Aliás, a partir de certo ponto, pela própria estética da série, morte e sexo quase que não se distinguem.
Ficam as questões, que procuraram conduzir o texto: até que ponto a última barreira ética e moral do ser humano não terá sido ultrapassada? A morte, apresentada na ficção televisiva, mas também nas notícias (p.e. com a guerra na Síria, ou na exibição de corpos noutras guerra, catástrofes, actos terroristas ou incêndios), e que nos entra livremente pela casa adentro, ficcional ou não, mais ou menos encenada que impactos terá? Estaremos hoje a viver uma dessensibilização da morte e do acto de matar com efeitos sociais visíveis naquilo que tem acontecido? Até que ponto não terá a televisão que se (auto)regular na forma como encena e transmite a morte?
É bastante pertinente o tema abordado, todavia, em séries como GOT e Spartacus, e aqui poderia incluir Rome e um sem número de séries que retratam periodos históricos (GOT é num mundo imaginário, estou consciente disso :D), o número de mortes é perfeitamente aceitável. Não me interpretem mal, digo “normal” aludindo ao número médio de mortes por episódio ou temporada, contabilizando os figurantes. Uma batalha de grande escala, em qualquer periodo histórico, traduzia-se em milhares de mortos, por isso os números tentam retratar a realidade. Presumo que a critica aos números esteja direcionada para as mortes “visualizadas”, isto é, mortes encenadas, e não aos números totais em si (a esmagadora maioria não aparece no ecrã). Esse tipo de morte é realmente preocupante, deveria ser mais comedida, ou então não estar acessível a qualquer público, é que “qualquer” criança/adolescente tem acesso imediato a GOT, por exemplo.
Se há uma descaracterização da morte, uma dessensibilização, isso há, concordo plenamente, tal como a utilização do efeito morte apenas para chocar. Mata-se apenas por matar, às vezes sem sentido nenhum, apenas para gerar visualizações, aumentar o número de espetadores.
Se pegarmos em SFU (agora utilizo SFU quase em tudo como termo comparativo :D), existe uma morte em todos os episódios da série (bem, só um é que não tem, salvo erro), mas são mortes incrivelmente bem retratadas, bem exploradas, não acontecem apenas só porque sim, não acontecem apenas para chocar. Existe contexto, existe luto, existe reabilitação. Há tempo para aprofundar a temática da morte, não se mata para depois no episódio seguinte não existir nada que faça referência ao que aconteceu na semana anterior.
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