Guardar castidade nas palavras e nas obras

A pretexto dos dez mandamentos, um agnóstico assumido pega nas regras essenciais da religião que moldaram o mundo ao longo de séculos e aplica-os à ficção televisiva.

O sexto mandamento é muito limitador. Proíbe todos os pecados contrários à castidade, nos quais se incluem a masturbação, a fornicação, a pornografia, as práticas homossexuais e o adultério. Mas vai mais longe ao proibir as conversas contrárias à castidade.

E, caramba, isto é muita coisa! Desde logo porque a cumprir-se à risca, das duas, uma: ou a programação era demasiado cinzenta e apartada da vida real, numa atitude hiperficcional e devota, ou não haveria espectadores para grande parte da ficção que actualmente se produz.

Desde logo porque aquela listagem é temática e, em alguns casos, específica de alguns tipos de séries. Senão vejamos:

A “masturbação”, as “conversas contrárias à castidade” e a alusão à “pornografia”, são território de excelência de grande parte das sitcoms, em especial aquelas que envolvem adolescentes. A dado passo, há sempre um episódio que aborda a questão de forma nem sempre divertida ou aprofundada. E esse é um problema, pois as abordagens são quase sempre caricaturais, quase como punchline grosseira ou desastrada de alguma situação (pseudo)cómica, ou então, como caracterizadora de algum personagem.

Por vezes, há abordagens diferentes, mais responsáveis e pedagógicas. Estão neste caso, por exemplo, “Black-ish” que, se bem me recordo, num dos primeiros episódios abordou de forma série, pedagógica e muito divertida a questão da masturbação e dos estímulos visuais, tendo por centro o filho mais velho de Dre, e a relação de fronteiras confusas entre pai e filho. Foi um episódio sobre a iniciação sexual, a passagem à adolescência, mas também sobre a parentalidade no séc. XXI.

Noutro campo, também bem conseguido, mas com intuitos diferentes, “Life in Pieces” tem abordado a questão, muitas vezes como comédia de desenganos, embora sem grandes intenções pedagógicas, criando situações mais ou menos inocentes devidamente apimentadas, apenas com o intuito de fazer rir.

Quanto às outras, nomeadamente a “fornicação”, as “práticas homossexuais” e o “adultério”, essas pertencem, normalmente, ao império das séries ditas sérias.

Uma constatação pessoal, que não sei se será acompanhada por muita gente, parece indiciar que actualmente, parte substancial das boas séries se dedica a reflectir sobre a vida de forma profunda, colocando em cena no seu dispositivo narrativo as diversas agruras da modernidade e um reflexo das alterações sociais a que estamos a assistir.

No caso do “adultério”, essa é por demais evidente. Um olhar sobre parte da ficção produzida actualmente versa sobre aquela temática. Uma das que mais maduramente reflecte sobre essa questão – pelo menos dentro daquelas de que vou tendo conhecimento – será “Divorce” que procede à anatomia da desagregação e tentativas de recuperação de um casamento. Está lá tudo: o desalento face à relação, a emoção do adultério (a fornicação), a ilusão da nova paixão, o vazio face ao abandono do outro, a desconfiança na recuperação. E não precisaríamos de ficar por aqui.

De forma menos série e aprofundada, a questão do adultério e fornicação é também utilizado como estereotipo caracterizador de algumas séries. Não há série que se passe num escritório de advogados ou num hospital que não aborde esta temática, meramente como ilustradora de relações laborais, não tendo grande importância no plot das suas séries. Assim de repente, lembro-me de “Grey’s Anatomy” – que deixei de acompanhar desde há muito (decisão sábia!) – e no qual, invariavelmente, temos estas situações recriadas de forma caricatural.

A homossexualidade vai na mesma linha. Embora aqui ainda haja muito para fazer. Hoje, grande parte das séries de qualquer tipo, têm um personagem homossexual. Há uns anos, quando apareciam, eram estereótipos efeminados de uma imagem deslocada que a sociedade tinha. Actualmente, os personagens são recriados de forma séria, com profundidade, reflectindo as agruras, celebrando as conquistas, mas ainda reflectindo o muito que está por fazer, em especial em termos de mentalidade.

E novas fronteiras e opções sexuais encontram eco na ficção televisiva. Não apenas com os transexuais, mas, por exemplo com os bissexuais. E, muitas vezes, de onde menos se espera. Uma sitcom com pergaminhos e impacto mediático, “Brooklyn 99”, fez uma das suas personagens principais assumir a sua bissexualidade. E isto numa série que já recriava um capitão negro, intelectual e homossexual.

Venham mais conquistas, alarguem-se mais fronteiras, rumo a uma sociedade mais inclusiva.

E dentro desta temática, não poderia deixar de abordar um conjunto de programas para televisão que tem vindo a ganhar espaço e de forma muito rápida. O dos programas, misto documentário, misto na primeira pessoa, sobre a diversidade sexual e sobre a emancipação do individuo face ao seu corpo e preconceitos ou amarras sociais.

Por exemplo, “Hot Girls Wanted”, documentário em seis episódios com temáticas diversas que coloca no centro a revolução sexual a reboque da internet e das exigência e expectativas que a sociedade e o individuo tem do sexo nas suas mais diversas formas. Muito cru, directo e extremamente viciante. Não tendo visto todos os episódios, vale a pena visitar a série.

Outra série, na mesma linha de divulgação de experiências, fantasias e expectativas, é “Slutever”, basicamente na primeira pessoa, no qual uma escritora e divulgadora destas questões deambula pela sexualidade questionando especialistas e profissionais.

Creio que estas séries reflectem conquistas sociais importantes, mas igualmente alertam-nos para a importância dos afectos e, acima de tudo, para a responsabilidade e responsabilização da sociedade e do individuo.

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