June ainda é o nome?
Depois da crueldade narrativa que lhe interrompera a fuga, “Other Women” volta a ser terreno familiar para June. O episódio abre de imediato com a orelha a ser trespassada como amostra de gado. Não sendo sequer necessárias palavras, é curso natural à distopia, o restabelecer de uma ordem que faz desvanecer o indivíduo. E não é esta uma hora televisiva verdadeiramente castradora para a protagonista? Vai-se além da violência infligida no corpo, entrando-se no campo daquilo que lhe restava como privado, como lembrança de individualidade. A mente deixa de lhe servir como escape, conspurcando-se pensamentos que agora lhe atribuem culpa. Há uma tentativa constante de June se fazer valer pelo seu nome original, única liberdade possível. Inconformismo, desafio, rebelião, posturas que lhe acompanham o nome. Sublime a cena na qual Aunt Lydia (Ann Dowd) desconstrói o nome da handmaid. Não se opõe a tratá-la como June, mas deposita-lhe no nome o peso total da culpa, criando assim um distanciamento e morte do indivíduo. Uma culpa avassaladora que observa atentamente as ruínas que para trás deixa. Durante o baby shower, June olha para uma Ofglen (Tattiawna Jones) agora incapaz de participar na oração em coro. Em seu redor, os danos colaterais por si infligidos, num cerco que aperta, sufoca, aponta o “egoísmo” no instinto de sobrevivência. Culmina no enforcado, outrora marido e pai. A dor sempre palpável num corpo proibido de exibir em demasia as emoções primárias.
“The Handmaid’s Tale” é um dos exemplos mais notórios de terror psicológico alguma vez trazidos para o pequeno ecrã. Gere-se muda, comunicando através de actos universalmente tidos como transgressores. Serena (Yvonne Strahovski) entra sorrateiramente no quarto da sua escrava e pousa-lhe a mão na barriga. Algo de perturbador reside nesse momento, qual jogo de cedências que deixa de perscrutar saída alguma. O rosto de Elisabeth Moss denuncia um ponto de ebulição que se difunde num sentimento de impotência.
A haver algo de menos positivo a apontar num episódio de excelência – mais um numa recta inicial de uma qualidade bastante consistente -, seria o uso dos flashbacks. Ainda que haja um propósito claro e temático na sua inclusão, o dito recuo infunde em demasia o teor novelesco e quebra um pouco o ritmo desenrolado no presente. É certo que se caracteriza a personagem, mas alia-se forçosamente um erro do passado às sucessivas tentativas de sobreviver a um regime que espezinha e violenta.
“Other Women” é mais um colosso para a direcção de fotografia. Actualmente, “The Handmaid’s Tale” é uma das séries que melhor uso dá ao seu visual para contar uma história. O espaço-prisão iluminado na dose certa, demarcando áreas limitadas que abafam as personagens. A luz que se entrevê nos espaços com um quê de proibido. As personagens enquadradas num cenário que as reduz em tamanho e importância, sufocadas pelo mesmo. “Other Women” coloca June no interior de um círculo – a imagem que abre esta crítica, e um outro instante em que se vislumbra a personagem rodeada pelo candelabro -, como aparente postal a uma ordem inescapável. A última cena do episódio diz tudo sem recurso a palavras. O olho da câmara acompanha o movimento de June (Offred?) sem nunca lhe enquadrar o rosto. Uma belíssima opção criativa que permite reduzir a protagonista ao anonimato que agora lhe é condição. Só é uma pena que não a tenham mantido até ao fim e que no último plano lhe seja visto o rosto.
Ovelha. Amostra de uniforme. Anónima.
We’ve been sent good weather. We’ve been sent good weather. We’ve been sent good weather. We’ve been sent good weather.
“The Handmaid’s Tale” é um dos exemplos mais notórios de terror psicológico alguma vez trazidos para o pequeno ecrã”.
Não é preciso acrescentar mais nada 😀 Depois de uma semana sem tempo para ver qualquer série, nada melhor do que 4 episódios seguidos desta pérola televisiva …
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