Num episódio que desbrava terreno, Serena olha para si mesma.
Uma visita ao exterior da bolha de Gilead, que lhe permite assimilar a extensão nefasta do totalitarismo. Numa das mais belas e significativas cenas alguma vez entregues pela série, Serena observa a liberdade para lá da fronteira – esse limiar de importância ainda mais cerrada numa América pós-Trump. O olhar de Yvonne Strahovski transmite tudo aquilo que as palavras não podem traduzir. A individualidade espelhada na roupa. O uso de telemóveis. A liberdade da fala. Um simples beijo trocado entre amantes em plena rua. Pequenos gestos, pequenas liberdades de escolha que a própria ajudou a proibir. Escrava de si mesma, de uma decisão que pesa e assombra como irreversível. É através dos seus olhos que os gestos mundanos se tornam utópicos.
I’m told you enjoy knitting as well.
“Smart Power” é mais um exemplo da sublime caracterização de Serena. Assim que aterra em terreno canadiano, vê-se silenciada. Uma criança deixada no parque infantil enquanto os crescidos tratam de coisas sérias. Assim se ridiculariza e diminui à insignificância alguém com dedo na génese da distopia. Qualquer poder ou estatuto que ainda poderia exibir – na verdade, cada vez mais inexistente em Gilead -, de nada lhe serve além fronteiras. O diálogo com a sua anfitriã diz muito sobre si mesma. Diálogo de contrastes, entre uma mulher que dedica a sua vida ao trabalho e uma outra que aceita sem espernear o destino de mãe que a sociedade lhe aponta.
Capítulo de viagem que permite a Serena ver-se pelo quão desumana realmente é. Não que na teoria não o soubesse, mas tem agora a oportunidade de se ver de fora, perceber os danos colaterais que advêm das suas próprias escolhas. Regressa derrotada. Recolhe-se para lamber as feridas, sem sequer confirmar o bem-estar do filho por nascer.
“Smart Power” tinha tudo a seu favor para ser o melhor episódio da temporada, mas deixa transparecer pequenas fragilidades narrativas que parecem querer avançar o percurso de June (Elisabeth Moss) de forma pouco orgânica. Porque haveria Serena de avisar antecipadamente que June será posta na rua assim que o bebé nascer, sabendo o quão imprevisível é a handmaid? A acrescentar a isto, a visita de Nick (Max Minghella) ao quarto de June. Visita duradoura o suficiente para contar os desenvolvimentos, sem a paranóia da vigia e com os Waterford presentes no mesmo piso. Para uma série onde a liberdade de expressão se mostra praticamente nula e onde a vigia é uma constante, chega a ser descabido que June e Nick interajam entre si de forma tão despreocupada. Pormenores que parecem servir convenientemente June e fechar momentaneamente os olhos aos entraves inerentes ao próprio regime.
This could be an Airbnb. Not a great one. Three-star reviews, maybe. “Amazing house, tons of character, nice view of the yard. Owners are super polite, but creepy as fuck. Some ritualized rape required”.
Custa a crer que numa série tão pessimista como “The Handmaid’s Tale” haja espaço para um humor negro tão certeiro, mas o que é certo é que se vão largando aqui e ali pérolas (Froot Loops) que permitem recuperar um pouco o fôlego e que lhe comprovam a versatilidade.
Concordo contigo em tudo. O episódio tinha tudo para ser excelente, assim apenas foi bom 😀
A curta estadia no Canadá foi excelente. Espero que no futuro possamos ver mais do “outro” mundo, nomeadamente o que os restantes países pensam da Gilead.
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Também acho que era capaz de ser interessante essa visão mais global de Gilead.
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