Ozark (T1): Árvore do crime

O texto que se segue CONTÉM SPOILERS

Antes de se embrenharem na segunda temporada acabada de chegar à Netflix, nada como um pequeno olhar ao ano de origem de “Ozark”. Causa e consequência numa das melhores séries de 2017.

Lavar dinheiro em família

O mais recente vício netflixiano cai inevitavelmente em comparações com “Breaking Bad”, seja pela temática que ronda, seja pela dinâmica entre os elementos da família protagonista. Se é realmente conterrânea da série de Vince Gilligan, é-o com significativo avanço. O espectador é largado in media res, como se entrasse de imediato no equivalente a uma terceira ou quarta temporada de “Breaking Bad”. Desprendido do jogo das motivações, do avança e recua face à (i)moralidade. “Ozark” prima pelo expoente máximo da racionalidade, algo que por vezes lhe tinge um pouco a verosimilhança. O protagonista guia o espectador por entre quaisquer decisões por si tomadas, exibindo um carácter por demais transparente. Uma honestidade constante, cinzenta na ordem do espectro moral. Contraria a máscara exibida por Walter White (Bryan Cranston) em “Breaking Bad”, esse que continuamente nos surpreendia e que tanto flutuava na nossa empatia. A transparência de “Ozark” é-lhe tanto um trunfo quanto tiro no pé. É logo no episódio-piloto que temos a família Byrde enquadrada no pior dos cenários. Não havendo um crescendo orgânico, a violência cedo se torna dado adquirido. Dir-se-ia até que é espelho da normalidade. Por entre tantas armas aos Byrde apontadas, torna-se difícil temer por estes. A solução surge sempre no último segundo, consistentemente honesta na forma como se apresenta ao espectador. É por caírem e se levantarem tantas vezes num tão embrionário percurso da série, que se torna difícil vê-los como meros humanos dotados de fraquezas. Desenvencilham-se uma e outra vez, não precisando que por eles se sustenha a respiração. Como tal, a conexão emocional do espectador para com as personagens demora a criar raízes. A nível pessoal, foi somente no avançado oitavo episódio que os consegui ver como seres que iam além do robótico. Uma hora televisiva inteiramente decorrida no passado, que chega na altura certa para os humanizar. Recuamos no tempo para os vermos de pés bem assentes na terra. As fragilidades mundanas vêm à tona, com Wendy (Laura Linney) a combater a depressão que a incapacita como mãe. As motivações são denunciadas nesse mesmo episódio, sendo-o nada mais nada menos que um futuro no qual não precisariam de se voltar a preocupar com dinheiro. Não na medida da sobrevivência mas sim para atingir um nível de vida desmesurado. Se até então se podia pensar em Marty Byrde (Jason Bateman) como único precursor da situação actual, tudo muda quando recuamos no tempo para testemunhar uma decisão tomada a dois. Contrariamente ao sucedido em séries como “Mad Men” ou a já referida “Breaking Bad”, aqui a mulher encontra-se em plena consciência da face oculta do marido. Aproxima-se assim de uma Carmela Soprano (Edie Falco), banhando-se nas regalias. Vai mais longe ao ter palavra final na decisão de Marty. Em “Ozark” as vítimas colaterais acabam por ser os filhos, nunca o casal.

A série da Netflix é revigorante na medida em que o “segredo” é compartilhado por ambos os elementos do casal. Decisão racional, tida por entre copos e promessas de futuro. Tudo o que daí advém é de certa forma auto-imposto, consequência directa dos ditos segundos que levaram ao “sim”.

Igualmente revigorante por não colocar revelações na sua meta. Sendo que aqui a mulher tem conhecimento de causa, acaba por não haver nessa dinâmica algo a desconstruir. É logo no episódio-piloto que nos tornamos conscientes dessa recorrente confidência no que ao mais obscuro diz respeito. O final do segundo episódio retira do jogo um momento-chave, sendo que numa qualquer outra série se teria visto prolongado no tempo. Wendy conta a verdade aos filhos, egoísta na medida em que lhes condiciona o dia-a-dia fruto de uma decisão sua tomada anos antes.

Charlotte: Whatever happened to my toy chest?

Wendy: They lost it.

C: How?

W: Sometimes, things just…get lost.

O supracitado diálogo, raro momento de vulnerabilidade e proximidade entre mãe e filha, é espelho daquilo que se perde. O significado na perda do baú funcionaria melhor como mera sugestão, nunca incorrendo numa gratuita troca de palavras que apontam e lhe dão relevo. Ainda assim, ilustra muitíssimo bem a perda da inocência. Ao contar a verdade aos filhos, Wendy quebra a ordem natural do crescimento, forçando-os precocemente a entrar na idade adulta. Curiosa a escolha do nome Wendy, se se tiver em conta a homónima oriunda de “Peter Pan” bem como a temática da entrada na vida adulta.

“Ozark” faz malabarismo com o tempo de antena de inúmeras personagens, sendo o dedicado a Charlotte (Sofia Hublitz) e Jonah (Skylar Gaertner) relativa constante. No que toca à filha não se desbrava muito para lá do cliché adolescente. No final do sétimo episódio, numa cena que levada avante teria sido certamente uma das mais chocantes do ano tamanha a sua frieza, Charlotte quase morre por afogamento. A narrativa suspende-se momentaneamente para recuar até ao passado que levou ao “aperto de mãos”. Regressa-se ao presente para um cenário de total inconsequência para Charlotte. Não digo que esta tivesse de o confidenciar aos pais ou a quem quer que fosse, mas um breve momento de introspecção seria requisito mínimo. Uma experiência dessa magnitude que simplesmente cai no esquecimento. Se havia ali possibilidade para contornos interessantes no seu carácter, parece-me que “Ozark” optou pelo coito interrompido.

Já no que ao irmão diz respeito, o percurso revelou-se de maior interesse. Sente-se esta criança tornada adulta como consequência directa de uma decisão que lhe foi alheia. Violenta os olhos com imagens de carnificina. Fá-lo no foro privado, incapaz de o discutir com os pais. É com quinze anos que obtém, segura, aponta uma arma de fogo pela primeira vez. E neste aspecto, “Ozark” entra no campo do pedagógico ao ilustrar a facilidade com que se obtém uma arma nos Estados Unidos. A sua evolução num curto período de dez episódios surge continuamente como resposta aos estímulos em redor. É com violência que se propõe à defesa de si e dos seus. Nos minutos finais da temporada, confessa não querer livrar-se daquilo que o rotula como Jonah Byrde. Não tanto pelas ligações que estabeleceu, como o é no caso da irmã, mas sim por um senso de orgulho pelo carácter que sozinho soube desenvolver. Apto à sobrevivência. Consciente de um mundo que aos quinze anos lhe deveria ser oculto. Há sequelas a longo prazo, algo que deveria ser abordado pausadamente numa possível segunda temporada. Ruth Langmore (Julia Garner) alude a essa mesma influência nefasta que vem do berço. A violência é-lhe acção e reacção.

Things happen because human beings make decisions, they commit acts and that makes things happen. And it creates a snowball effect with the…you know, their world around them, causes other people to make decisions. Cycle continues, snowball keeps rolling.

A linha de diálogo de Marty, proferida dez anos antes, caminha de mãos dadas com a racionalidade que tão bem o caracteriza. O protagonista de “Ozark” é espelho da postura da própria série. O efeito bola de neve, salientado por este de forma lúcida. É Marty quem indirectamente mata a mulher do pastor, vítima-mor no colateral. Não deixa de ser irónico que este não chegue nunca a pressionar o gatilho de uma arma. São as restantes peças no tabuleiro a sujar as mãos.

A temporada termina num registo optimista, num limbo que os separa da chegada do novo vilão. A família prevalece. Há uma aura de resolução nos últimos minutos que se acautela para a possibilidade desta ser meta a “Ozark”. Mero falso conforto. Reunião de indivíduos danificados que merecem um maior aprofundamento. À superfície, inúmeras foram as peças a ser movidas no tabuleiro. No âmago de “Ozark” há ainda muito a (des)construir.

Artigo originalmente publicado a 13 de Agosto de 2017.

3 opiniões sobre “Ozark (T1): Árvore do crime”

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