Nada em ficção é definitivo. Nem a morte de um protagonista, nem a de um personagem, muito menos a de uma série. Façam um esforço e procurem lembrar-se de quantos regressos – ou revivals – vimos nos últimos dois anos. Pois foi, esses e muitos outros.
Não serve esta crónica para os enumerar ou debater os méritos/deméritos do regresso, antes reflectir um pouco sobre um caso concreto: “Murphy Brown”.
Esta saudosa sitcom, escrita por Diane English e protagonizada por Candice Bergen, marcou a década de 1990, sendo a série percursora das sitcoms políticas, como “Veep”. Ambientava-se num canal noticioso, estilo CNN, e tinha como catalisador uma opinativa e arrojada jornalista política, cruelmente sarcástica e dona de uma lógica arrasadora.
Foi das séries que contribuiu para a minha educação política e cívica (sim, houve uma altura em que a televisão tinha esse condão!). Nos anos em que existiu semeou polémicas e ódios. Por estranho que pareça a Murphy Brown, personagem de ficção, teve uma discussão dura com um ódio de estimação real, o verdadeiro Vice-Presidente dos EUA, Dan Quayle. Este considerou a personagem um mau exemplo para a sociedade americana; por sua vez, a série incorporou a polémica real na ficção, criando um efeito de espelho surpreendente com a discussão entre o personagem ficcional e o Vice-Presidente real (e uma América conservadora) a atingir níveis pouco prováveis para a actualidade.
Aliás, “Murphy Brown”, a série, vivia muito desse efeito de espelho para com o mundo real, legando episódios notáveis, extraordinariamente bem escrito, servindo por um elenco em estado de graça, no qual cada personagem tinha existência própria. Há episódios verdadeiramente hilariantes. E não se pense que todos os episódios são políticos ou de crítica social. Pelo contrário, muitos ao invés de colocarem o dedo na ferida, tocam no sentimento, dando episódios inocentemente hilariantes. Tenho da minha memória afectuoso-divertido o episódio em que Murphy Brown dá à luz… vede para crer!
Dito isto, avancemos para o âmago desta Crónica: o regresso de “Murphy Brown”.
De todas as séries que conheceram uma nova vida, em anos recentes, julgo que apenas esta faz sentido nos dias de hoje, face ao contexto político e social em que vivemos. Deixem-me ser politicamente incorrecto: “Murphy Brown” foi de forma superlativa aquilo que “Veep” quase conseguiu ser. Pelo menos até à temporada em que consegui acompanhar.
É Donald Trump que justifica o regresso da série. E, pelo seu passado de luta contra o sistema, faz todo o sentido. É assim que nos é vendido o regresso. A vitória de Trump, com o caos moral e ético que tal revela nos EUA (e no mundo), faz com que o canal televisivo faça regressar a sua equipa maravilha. E é isso que também justifica a necessidade que o canal real teve em ressuscitar a série. Isso e a expectativa de audiências que o contexto potencialmente permitiria. Pelo menos teoricamente.
E ainda há um outro picante aproveitado pelos escritores que serve de espelho entre o real e o ficcional e que é contada pela actriz que dá vida a jornalista ficcional e que é uma daquelas coincidências salivantes para quem gosta de leituras meta. Candice Bergen e Donald Trump são da mesma idade, tendo estudado perto um do outro na sua juventude, conhecendo-se. De facto Trump convidou uma jovem Bergen a sair, num encontro que não deixou grandes recordações e que ela refere não dever ter sido grande coisa, pois não se voltou a repetir. E esse episódio real é transportado para a ficção.
Mas, com mais anedota ou menos anedota, mais picante ou menos picante, uma série que tinha tudo para resultar acaba por demonstrar que há séries que mais do que envelhecer não se conseguem adaptar aos tempos nem ao devir da sociedade.
E é aqui que temos que fazer uma ligeira contextualização com muitas das outras séries que conheceram um revival: é que a maioria mais do que transpor a fórmula, procura adaptá-la aos tempos actuais.
“Murphy Brown” falha aqui em toda a linha. Ao pegar numa boa ideia, num período temporal e social que o justifica e numa equipa vencedora, mais não consegue do que se auto vangloriar e auto homenagear, sem conseguir transportar a frescura de outrora e muito menos a capacidade de criticar política e socialmente de forma dolorosa e acutilante.
E é uma pena, pois os EUA precisam de “Murphy Brown”.
Bom texto!
Concordo com tudo.
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