Seja por uma maior abertura ao improviso, seja por uma qualquer restrição imposta pelo canal que lhe virá a servir de casa, um guião pode sofrer mudanças significativas durante o percurso que o conduz do papel à sala de montagem. “Breaking Bad” e “Mad Men”, duas das séries mais fortemente aclamadas da história da televisão, têm na sua origem guiões que merecem o estatuto de estudo.
É nesse pequeno exercício que aqui me foco, na leitura dos argumentos que serviram de catapulta às respectivas séries, numa tentativa de visualizar internamente aquilo que não chegou a encontrar lugar no produto filmado e posteriormente exibido.
Dez anos depois, o episódio-piloto de “Breaking Bad” continua a servir por si só como uma autêntica masterclass na arte da escrita, com cada minuto a alimentar a caracterização de um anti-herói que nasce diante dos nossos olhos, seja essa mesma caracterização feita com Walt em palco, seja feita por via de outras personagens. Uma confluência de motivos recalcados – a postura passiva do protagonista constantemente espezinhada -, que o conduzem à tomada de posse da sua própria situação. O episódio-piloto é tanto um ataque quanto teste à sua postura como homem, marido, pai. Um dos mais ilustres exemplos de causalidade presentes no panorama televisivo.
Uma das mudanças mais significativas entre guião e produto filmado, passa pela idade da personagem principal. Concebido no papel como tendo 41 anos, Bryan Cranston acaba por dar corpo a um homem de 50 anos, facilitando assim a crise da meia-idade que tão levianamente lhe diagnosticam como resposta ao escapismo que gradualmente exibe. A festa de aniversário que reúne família e amigos é inexistente no guião que lhe serviu de base. Na leitura, uma só referência de Skyler (Anna Gunn) ao significativo ponto de viragem que havia sido o quadragésimo aniversário do marido, algo já distante no tempo. No produto exibido, o efectivo festejo como lembrete de idealizações passadas que se perdem no real. Uma renovada opção criativa que demarca no tempo o princípio da metamorfose de Walt, âncora à memória do espectador nos anos vindouros.
Difícil esquecer a cena em que Skyler masturba o marido debaixo dos lençóis, sem desviar os olhos do portátil no qual acompanha a licitação de um artigo seu. Presentes a honestidade e o à-vontade de um casal que coexiste há imenso tempo. Espelho à queda na rotina, por entre bocejos e atenções divididas. Uma cena bastante importante na tradução da dinâmica entre ambos e que segue à risca as linhas do guião original. Ausente no produto filmado um outro momento de cariz sexual, cronologicamente anterior à cena citada e respeitante à masturbação de Walt pelo próprio. Descrito nas entrelinhas como um momento de solidão e de falta de auto-estima, é também o momento em que Walt observa a passagem do tempo ao espelho. Comparando guião e produto final, há que aplaudir a decisão de não ir avante com a cena. Ainda que seja um momento rico na caracterização da personagem principal, na sua ausência pode-se teorizar o promover de Skyler na dinâmica do poder. Controla o regime alimentar de Walt, aponta-lhe o que não deve aceitar no trabalho, decide quando e de que forma o marido deve atingir o orgasmo. Ao adicionar a cena em falta, dar-se-ia a Walt a aparência de um “eu” que há muito deixou de ter voz no seio conjugal.
De salientar ainda o sentido de humor presente na escrita de Vince Gilligan, dando um gozo especial à leitura. Antes do nome Walter White ser referido pela primeira vez, a sua personagem vê-se descrita várias vezes como underpants man.
Ao contrário da sua compatriota do AMC, o episódio-piloto de “Mad Men” segue fielmente as linhas do respectivo guião, traduzindo em imagens tudo aquilo que havia sido originalmente idealizado. Exímio na apresentação das personagens e no estabelecer de um período no tempo que lhes dita costumes e maneirismos. O único factor em falta vindo do guião é a nudez. Se fez falta no curso da série? Sendo o sexo um dos vícios maiores do protagonista, talvez. Mera restrição do canal (seria bem diferente com a HBO ou Showtime como casa) ou com uma pitada de opção criativa que cedo estabelece um tom a seguir? A verdade é que nunca se correu o risco de resvalar no gratuito.
A experiência é diferente quando se tem em mãos um guião cujo produto filmado nos é inteiramente desconhecido. É o caso de “Sneaky Pete” (Bryan Cranston, isto é tudo teu), lido sem quaisquer imagens concebidas de antemão. Ainda que não se encontre ao nível dos dois episódios-piloto supracitados, trata-se de um primeiro guião bastante fluido e de fácil visualização. No produto filmado são várias as cenas sem base no guião – não havendo originalmente sequer tempo e espaço para a personagem de Cranston -, e várias as metamorfoses sofridas por cenas pré-existentes. A mudança na cena final – pondo assim de lado um cliffhanger pobre e denunciado, a favor de uma ambiguidade mais empolgante a longo prazo – parece querer elevar no destaque a grande actriz que é Margo Martindale, inicialmente concebida com um menor tempo de antena.
No guião original de “Sneaky Pete”, encontram-se presentes três momentos que rondam o tão idílico “verde” da infância. Inicialmente contado pela óptica da nostalgia, esse mesmo cenário perde o verde vivo que inicialmente o caracterizara, ilustrando-se então mais cinzento. Do idealizado ao real. Na recta final do guião, o protagonista volta a contemplar o mesmo cenário e encontra o tal verde vivo que lhe havia sido inicialmente impingido. Uma progressão simbólica que infelizmente se encontra ausente no produto final, roubando a personagem da aceitação da sua nova condição.
Independentemente das mudanças que poderá vir a sofrer, um guião é sempre um bicho próprio na forma como pinta a acção na cabeça do leitor, esse precoce espectador.
Já tinha saudades dos teus textos Rafa 😀
Breaking Bad irei rever quando terminar Better Call Saul (já terminei a última temporada e continua excelente). O episódio piloto é qualquer coisa… Desconhecia essa cena do Walt, mas ainda bem que não foi incluida, até porque, como dizes, acentua o poder de Skyler.
Mad Men também deixou imensas saudades, pelo menos a Peggy continua a deslumbrar por aí 😀 Contrariamente a muitas séries que andam por aí, a nudez faria todo o sentido numa série como Mad Men…
Sneaky Pete não vi, vale a pena?
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